História

   Síntese Histórica de Aldoar

Sobre Aldoar há muito para dizer, aliás a construção da história desta freguesia é feita todos os dias por cada um de nós. O texto abaixo transcrito, foi retirado do livro Aldoar "Guias das freguesias do Porto" da autoria de Júlio Couto.

    A Freguesia de Aldoar, limítrofe do conselho de Matosinhos e confrontando a poente com o oceano Atlântico, era uma aldeia distribída ao longo da comprida rua da Vilarinha, sendo o caminho mais directo para os "da cidade" irem em peregrinação ao Bom Jesus de Bouças, primeiro, e á romaria do Senhor de Matosinhos, depois. "Por ela passavam multidões de romeiros a pé, cavalgaduras e carros de toda espécie, o que originava grande movimento, e, por isso, o regedor aperrava os cabos para policiarem a estrada, pois no regresso havia sempre desordens, cabeças esquentadas e quebradas". Pinho Leal, em 1886, escrevia a mais deliciosa noticia sobre as gentes e os costumes de Aldoar: "É costume em volta do Porto, nesta freguesia, entreterem-se os filhos e as filhas do campo (manéis e lavradeiras) com requebros e amabilidades, conversando ou namorando francamente desde a infância, em toda a parte, de dia e de noite nas ruas, na lavoura, nos arraiais e nas feiras. Estão, por vezes, horas e horas, conversando em prosa e em verso deslambido, coisa muito interessante  para os estranhos à classe. Conversam por entretenimento e simples distracção, muitas vezes sem intenção de casarem, outras vezes por afeição ou paixão".
   Sobre as origens de Aldoar, Fernando Lanhas conseguiu "desenterrar" relíquias da presença pré-histórica. E Adriano Vasco Rodrigues, em 1973, procedeu a escavações, determinando a existência de um aldeamento de pescadores pertencente a um período anterior à romanização.
   E é por aqui que vamos iniciar a nossa peregrinação, ainda que necessariamente curta, pela história de Aldoar. Da passagem dos Romanos por esta zona, ficaram-nos "Vila", "Vilar" e "Vilarinha", que terão derivado em linha recta do nome da herdade romana, a "Vila". E chegamos ao ano de 716, datada queda de Cale, em que os muçulmanos dominam o Bort-Kal (o território mais ou menos correspondente ao actual Douro Litoral). Em 868 chegaram os primeiros cristãos asturo-leoneses e, desta vez são os seguidores de Alá a serem corridos para lá... mas voltam! Desses tempos nos ficou a recordação no topónimo "Fonte da Moura". Quantas lendas e quantos sonhos de tesouros enterrados se viveram, ao longo dos tempos, com base nas fontes onde as mouras se vinham lavar ou tão só pentear... Em 920 travou-se a célebre batalha nos terrenos da actual Praça da Batalha (e daí lhe veio o nome), que degenerou em razia dos cristãos às mãos dos muçulmanos, sob o comando do feroz califa Al-Mansor. 
   Os muçulmanos sempre viveram na angústia de incursões marítimas, quer Vikings quer Normandas. Já em 844 o normandos tinham vindo até à Galiza e em 850 desceram da Irlanda e puseram a ferro e fogo a cidade galega Rosalia de Castro, a actual Padron, ao tempo Iria Flávia. E tiveram de ser bem pagos para não fazer o mesmo à cidade do Apóstolo, a orgulhosa Santiago de Compostela. Das costas galegas, os corsários desceram ao Minho e ao Douro. Numa tentativa de deter a sua penetração, os muçulmanos entregaram aos seus monges-guerreiros berberes a defesa de uma fortaleza na encosta sul do rio. Era Ribat, ou Al-Ribat, como eles diziam (de onde nos ficou o topónimo Arrábida), exactamente na encosta onde se encontra o bairro piscatório da afurada, e também a palavra rebate, ainda hoje na acepção de alarme ou chamada às armas. E outro topónimo que recorda a presença muçulmana é o de Aldoar. Pinho Leal diz que "é a palavra árabe (Alduar ou Aldoar) e significa redonda. Deriva-se do verbo daûara, cercear a roda". Adriano Vasco Rodrigues diz que "em árabe Al-Duar significa acampamento militar e também pequena mesquita. Inicialmente, as tendas dos acampamentos serviam de mesquitas". O saudoso Sousa Machado não concordava com esta versão, achando que "estamos em face de um genitivo da palavra alduarius". Pela nossa parte somos partidários da origem muçulmana em vez da proveniência sueva ou visigótica.
   Em 944, frei Agione edificou, possivelmente no local da antiga mesquita muçulmana, um pequeno templo cristão, sob a invocação de S. Martinho e de S. Miguel Arcanjo.
   Num documento de 944, em plena expansão do território portucalense, se refere a existência de uma espécie de mosteiro, só que com regras pouco ortodoxas e reunindo homens e mulheres da mesma família, quasi que reservando a admissão neste "hermitágio" a pessoas da família dos fundadores. Viterbo, a páginas 313 do 2.º volume do seu Elucidário, dá para "hermitágio" o sentido de "ermida, santuário, capela ou casa de oração, fundada em lugar ermo e solitário, de onde lhe veio o nome, e não por ser habitado por algum eremita ou ermitão". E é à volta da sua igreja que se vão congregando as famílias , os filius Eclesiae, ou seja os filhos da igreja. E onde viviam era a sua área, a freguesia. Por aqui são essencialmente os aradores, os homens que tratam a terra, que se vão ajustando aos cursos de água de que necessitam para sobreviver.
   E em Aldoar corriam ao tempo vários ribeiros. O maior descia paralelo à Vilarinha até à Boavista actual e daí para o mar, onde está hoje o Castelo do Queijo; outro, o do Vilão (de que nos ficou a Rua de Revilão ou seja a Rua do Rio Vilão), que corria entre charcos e terrenos pantanosos e vinha até à Fonte da Moura. E a necessidade e a expansão vão fazendo aparecer novas profissões relacionadas com o quotidiano, surgindo então os moleiros, os ferradores, os carpinteiros, os oleiros e um ou outro pescador.
   E aproximamo-nos do "perigoso" ano Mil. É desse tempo a frase que diz que o mundo a mil chegará, mas de mil não passará... mas passou, e logo a frase foi emendada para "de mil passarás, mas a dois mil não chegarás".
   Mas, antes, façamos uma pequena incursão pelas invasões: houve várias de vikings, mas a mais importante foi, sem dúvida, a que, sob o comando do dinamarquês Jarl Ulaf, em 1032 saqueou as costas da Galiza e do Norte de Portugal, chegando até aos limites do Douro Litoral. Foi tal a sua importância que as sagas dinamarquesas se lhe referem como Ulaf-Galiza. Ainda no século XI surge uma forte incursão de normandos (também conhecidos por galos ou francos) que chegaram às proximidades de Aldoar, tendo travado um renhido combate com os habitantes, com vitória destes, num lugar nosso vizinho, e que ainda hoje se conhece pelo topónimo de Francos.
   Mas voltando ao ano Mil. George Duby dedicou todo um livro a este assunto, que poderemos resumir em poucas palavras: "A Europa tinha sido assolada, ao longo dos tempos, pelos Quatro Cavaleiros do Apocalipse - Fome, Peste, Guerra e Morte! Com tais companhias, os crentes viam cada vez mais difícil a salvação das suas almas. Só lhes restava o apegarem-se cada vez mais à sua fé e choviam as doações à Igreja e as pessoas deixavam os seus bens terrenos com a expressa indicação de ser "pro remedio anima nostra", ou seja, para salvação das nossas almas. Muitas dessas cartas de doação chegaram até aos nossos dias e a magnifica Biblioteca Pública Municipal do Porto tem um acervo bem recheado desse género de documentos...
   E surge a intervenção da "Cruz de Malta" que virá a absorver esta zona nos seus domínios. Quem eram? Quando os cristãos, no século XI, sob o comando de Godofredo de Bolhão, tomam Jerusalém, que estava em poder dos turcos , fundam ali um hospital. Assim se viu criada a ordem do Hospital que, devido à sua actividade caritativa, se viu apenas na dependência directa da Santa Sé, isenta portanto de qualquer poder temporal. Com o andar dos tempos e com o perder-se, de novo, Jerusalém, veio a Ordem para a ilha de Malta que, para tal, lhes tinha sido concedida pelo Imperador Carlos V. E aí se muda o nome para Ordem de Malta.
   Ao que parece o pai do nosso primeiro rei, o Conde D. Henrique, teria lutado ao lado dos primeiros hospitalários e a ele se deveria o facto de sua esposa, D. Teresa, ter cedido à nova Ordem os seus direitos sob alguns territórios, incluindo Leça. E ao condado de Leça pertenciam muitas Igrejas, não só no Couto propriamente dito, caso de Infesta, Custóias, Barreiros e Guifões, como fora do Couto e entre estas Aldoar. Não cabe nas dimensões deste Guia, nem nas suas intenções, fazer a história das ligações de Aldoar a Leça. Digamos só a titulo de esclarecimento que, por morte do Prior D. Estevão Vasques Pimentel, que tinha fundado o Mosteiro de Leça, a Ordem transferiu a sua sede para o Crato, e Leça ficou como simples comenda, passando, em 1571, a ser bailiado. Daí o nome que ainda hoje mantém de Leça do Baílio.
   E que assim era, e para não ficarem dúvidas, quando, em 1259, o Rei D. Afonso III mandou fazer as suas "Inquirições" (assim a modos que saber o que lhe pertencia e o que indevidamente estava ocupado ou não pagava impostos), quando chegou a vez de Aldoar mandou que comparecesse o representante da Ordem e, perante ele, se apresentou Frei Sueiro, pároco da Igreja de Aldoar, que sob juramento, declarou ser a igreja pertença da Ordem do Hospital e, quanto ao mais, existirem 23 casais de Aldoar, dos quais três pertenciam ao Rei e vinte à Ordem. Que não sabia como tinham vindo para a posse da Ordem, mas que lhe pertenciam e que estavam isentas de pagar foro ao Rei, porque se tinham "composto" com o mordomo de Bouças. Não de todo contente com o depoimento de Frei Sueiro, mandou o Rei inquirir dos moradores, e por certo dos que habitavam os casais que lhe pertenciam - os três Domingos: o Domingos Parracos ou Penatus, o Domingos Pelágio ou Paes e o Domingos Martins. E todos foram unânimes em confirmar o que dissera o frade da Ordem, acrescentando que os seus avôs (entenda-se antepassados) tinham feito as suas herdades foreiras do Hospital, para que a Ordem os defendesse "de todos os foros régios".
   E porque assim era, não tinham eles, agora, que pagar foro. Ou seja, tinham trocado de dono... Por certo as imposições do Rei, ou do Mordomo de Bouças, eram mais pesadas que o tributo imposto pela Ordem, que até tinha a sua casa Mãe perto dali "o Mosteiro de Leça do Bailio", e era um dos grandes proprietários da zona, mais concretamente o segundo maior, logo depois do Mosteiro de Cedofeita.
   Já que falamos de Bouças, ou mais propriamente do Julgado de Bouças, verificamos que ele era delimitado, a sul, pelo rio Douro, a Poente pelo mar, a Norte pelas terras do Julgado da Maia e a Nascente pelo de Gondomar e parte da cidade do Porto. Era constituído pelas vilas de Aldoar, S. João da Foz, Nevogilde, Lordelo, Portus (um pequeno lugar cerca de Massarelos), S. Miguel de Ramalde, Ramalde de Cima, Ramalde de Baixo, Ramalde do Meio, Requesende, Seixo, Francos (hoje todos incluídos na cidade do Porto), Linhares, Lavadores, Real, Carcavelos, Pinheiro, Sendim (incluídos nas freguesias de Matosinhos e Senhora da Hora), Vila Nova e Vila Seca (hoje parte da freguesia de Leça da Palmeira). Curioso é verificar que em todo o Julgado de Bouças, constituído por casais, granjas, campos, etc., os seus possuidores são o Rei, as Ordens Religiosas (especialmente a Ordem do Hospital, mas também os Mosteiros de Cedofeita, Santo Tirso, Tarouca, entre outros), os senhores eclesiásticos (Bispo do Porto e a Igreja de Vermoim) e herdadores. Isto é, não surge um único nobre como residente ou proprietário em Bouças. Mas deixemos o Julgado de Bouças, aliás ele ainda nos irá surgir outra vez, já com forma actualizada, mais tarde, na vida de Aldoar.
   Por enquanto a vida foi decorrendo nesta zona agrária, mas de quando em vez, Aldoar dá noticias de si. Assim, em 1773, alcançava sentença contra o Marquês de Fontes e Pantaleâo Correia Gaio sob o aforamento de maninhos. Quando, em 1788, o Padre Rebelo da Costa publica a sua Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto (e já agora digamos a eventuais interessados que é mais completa a segunda edição que a primeira), atribui a Aldoar 68 fogos. Como "fogos" era a expressão sinónima do antigo "casais", vemos que em 400 anos, em Aldoar, a população nem triplicou... E, já agora, digamos que o Padre Agostinho Rebelo da Costa coloca Aldoar a uma légua do Porto, o que era, para a época, muito longe...
   Até que os ventos do liberalismo vão soprando pela Europa e Portugal não podia fugir à regra. D. João VI morre, deixando o trono a seu filho, mas sem indicar a qual deles, e a luta estala entre os dois irmãos: o absolutista D. Miguel e o liberal D. Pedro.
   A luta fratricida deixou marcas em Aldoar. Por aqui passava a estrada para Matosinhos, ou mais propriamente para o Bom Jesus de Bouças. Era a Vilarinha. Era a velha estrada que o Corregedor Francisco de Almada, continuando a obra de seu pai João de Almada, então Presidente da Junta das Obras Públicas, fundada em 1758 pelo Marquês de Pombal, seu primo, tinha mandado reparar porque "se encontrava intransitável por ser antiquíssima e correr em terrenos pantanosos". Mal se podia imaginar que, duzentos anos depois, em 1950, por essa mesma "estrada" se correria o Primeiro Circuito Internacional Automóvel do Porto, com bólides conduzidos pelos nomes famosos do automobilismo internacional de então, como Ascari, Bonetto, Farina e os portugueses Nunes dos Santos, de Lisboa e o portuense Casimiro de Oliveira... E por um americano que terminou a "sua" corrida, enfaixando-se numa das árvores da Circunvalação. E, oito anos mais tarde, ainda pela Vilarinha se correria parte da primeira corrida de Fórmula 1, em Portugal.
   Mas voltemos aos liberais: Se bem que as tropas comandadas pelo Rei Soldado, desembarcadas a 8 de Julho de 1832, na Arnosa de Pampelido, tivessem vindo para o Porto pela antiga estrada de Vila do Conde, mais a norte (hoje Carvalhido, Monte dos Burgos, Cedofeita), quando as tropas miguelistas fecharam o cerco da cidade, foi nos limites da freguesia de Aldoar que estabeleceram um dos seus fortes, exactamente o Forte da Ervilha. Era uma fortificação rodeada por muros de sebes e estevas, reforçados com parapeitos à prova de bala. No interior do forte as linhas eram guarnecidas por palissadas, tendo na sua  frente poços com cerca de dois metros de profundidade por três de largura. Considerava-se um forte inexpugnável. Foi palco de muitos e violentos combates, especialmente em 24 de Janeiro de 1833, quando as tropas liberais, sob o comando de Solignac, o ocuparam.
   Serão, por esta época, alienados para o Estado os bens da Ordem de Malta. Ao que parece, como em outros locais, e nesta época como em outras, também em Aldoar a situação da transferência dos bens das Ordens Religiosas não correu com a lisura que seria de esperar e a Junta das Paróquia Procurou investigar para onde tinham ido esses bens, reclamando mesmo junto da Administração do Concelho casa e condições da vida para o pároco, já que nada lhe tinha ficado.
   E que nos permitam transcrever aqui o termo de abertura do primeiro livro de actas da Junta da nossa Paróquia, pelo punho do seu presidente Manuel Gonçalves: "Este libro hade serbir para nele se escreberem as sessões da Junta da Parochia desta Freguesia de Sam Martinho de Aldoar no prezente ano e vai por mim numerado e rubricado com o meu sobre nome - Gliz de que uso no fim deste termo de encerramento. Aldoar 28 de Janeiro de 1836. Manoel Gonsalviz".
   Em 1895, Juntamente com Nevogilde e Ramalde, Aldoar é incluída na cidade e, em 1916, passa a pertencer à região eclesiástica do Porto. A freguesia, que tinha começado junto da sua igreja, é das últimas, juntamente com Lordelo do Ouro, Foz do Douro, Nevogilde e Ramalde, a ser incluída na Igreja do Porto.
   Justificava-se então, e muito, a frase que esse "jovem" de Aldoar, Tito Livio Van Krieken, escreveria em O Comércio do Porto, a 13 de Agosto de 1989: "Das três mais jovens freguesias do Porto, Aldoar é a que mais e melhor sabe a campo e com um cheirinho, quasi sempre, a maresia. Até quando?".